Possibilidade de Aplicação do Código de Defesa do Consumidor nos Contratos Bancários celebrados por Microempresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP)

O Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), em seu art. 2º, definiu que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.” Já no art. 3º, contemplou que “Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços”.

No § 2°, do art. 3º, o CDC dispôs que “Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista.” O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, visando unificar o entendimento sobre o assunto, editou a Súmula 297, com o seguinte teor: “O Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras.”

Ocorre que, em que pese os dispositivos legais e posicionamentos de tribunais sobre o tema, uma questão controvertida ainda resta: existe relação de consumo nos contratos celebrados entre bancos e pessoas jurídicas?

Acredito que sim, apesar do entendimento jurisprudencial ainda não ter se consolidado neste sentido. Pelo contrário, a maioria dos julgamentos ainda tem ocorrido em sentido contrário, infelizmente.

Conforme art. 2º do CDC, a definição de “destinatário final” é determinante para a caracterização de Consumidor.

Várias teorias foram desenvolvidas pela doutrina para esclarecer a questão, sendo que a “Teoria Finalista”, a princípio, prevaleceu e começou a pautar o entendimento do STJ para afastar a existência de relação de consumo nas ações que discutem contratos bancários firmados com pessoas jurídicas.
Segundo esta teoria, destinatário final é todo aquele que utiliza o produto ou serviço como consumidor final (de fato e econômico). Consumidor final de fato porque o produto ou serviço será para o seu uso pessoal. E consumidor final econômico porque o produto ou serviço adquirido não será aplicado em qualquer finalidade produtiva, tendo seu ciclo econômico encerrado na pessoa do seu adquirente.

Ou seja, destinatário final seria aquele que tira o bem do mercado ao adquirir ou simplesmente utilizá-lo (coloca um fim na cadeia de produção). Não seria consumidor aquele que utiliza o bem para continuar a produzir, pois ele não é o consumidor final, ele está transformando o bem, ou incluindo o serviço contratado no seu, para oferecê-lo, por sua vez, ao seu cliente, seu consumidor, utilizando-o como insumo da sua produção.

Assim, diante da teoria adotada, o STJ vinha se posicionando sempre no sentido de não admitir a aplicação do CDC no caso contratos bancários firmados pelas pessoas jurídicas, pois este seria inserido na atividade produtiva empresarial, como um insumo.

Via de regra, a principal fonte de capital de giro na atividade empresarial é o crédito obtido perante às instituições financeiras. Por outro lado, sabemos que a postura dos bancos brasileiros revela-se claramente abusiva, através da imposição de juros elevados, assinatura de contratos em série (venda casada), imposição de encargos ilegais, cobrança de tarifas indevidas, e submissão a contratos de adesão (unilateralmente propostos).

Neste cenário, nos parece evidente a relação de desequilíbrio, dependência e fragilidade existente entre o pequeno e médio empresário e as poderosas instituições financeiras, que se colocam em situação de superioridade técnica, jurídica, econômica e de informações. Não se vislumbra, em absoluto, o equilíbrio contratual característico de uma relação civil comum.
Diante deste contexto, uma nova teoria foi desenvolvida e logo passou a ter a adesão de juristas e influenciar os tribunais, a “Teoria Finalista Mitigada” (ou Aprofundada). Segundo ela, o elemento principal de caracterização da relação de consumo é a hipossuficiência de uma parte em relação à outra.

A Teoria Finalista Mitigada amplia o conceito de consumidor, incluindo todo aquele que possua vulnerabilidade em face do fornecedor, embora não seja tecnicamente o destinatário final do produto ou serviço. Decorre da mitigação dos rigores da teoria finalista para autorizar a incidência do CDC nas hipóteses em que a parte se apresenta em situação de vulnerabilidade.

O próprio STJ, inclusive, passou a adotar a teoria Finalista Mitigada:
“AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO E NOVAÇÃO DE DÍVIDA. RELAÇÃO DE CONSUMO. TEORIA FINALISTA MITIGADA. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM CADASTRO DE INADIMPLENTES. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 535 DO CPC. SÚMULA 7/STJ. DANO MORAL. RAZOABILIDADE.1.- Tendo o Tribunal de origem fundamentado o posicionamento adotado com elementos suficientes à resolução da lide, não há que se falar em ofensa ao artigo 535, do CPC. 2.- A jurisprudência desta Corte tem mitigado a teoria finalista para autorizar a incidência do Código de Defesa do Consumidor nas hipóteses em que a parte (pessoa física ou jurídica), embora não seja tecnicamente a destinatária final do produto ou serviço, se apresenta em situação de vulnerabilidade. Precedentes. 3.- A convicção a que chegou o Acórdão acerca do dano e do aval decorreu da análise do conjunto fático-probatório, e o acolhimento da pretensão recursal demandaria o reexame do mencionado suporte, obstando a admissibilidade do Especial os enunciados 5 e 7 da Súmula desta Corte Superior. 4.- A intervenção do STJ, Corte de caráter nacional, destinada a firmar interpretação geral do Direito Federal para todo o país e não para a revisão de questões de interesse individual, no caso de questionamento do valor fixado para o dano moral, somente é admissível quando o valor fixado pelo Tribunal de origem, cumprindo o duplo grau de jurisdição, se mostre teratológico, por irrisório ou abusivo. 5.- Inocorrência de teratologia no caso concreto, em que foi fixado o valor de indenização em R$ R$ 35.000,00 (trinta e cinco mil reais), devido pelo ora Agravante ao autor, a título de danos morais decorrentes de inscrição indevida em cadastro de proteção ao crédito. 6.- Agravo Regimental improvido.” (STJ – Processo AgRg no RESP 1413889/SC 2013/0349718-6. Relator Ministro Sidnei Beneti. Julgamento: 27/03/2014. Publicação: 02/05/2014. Órgão Julgador: Terceira Turma)

O nosso TJMG também tem se posicionado neste sentido:
“EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO REVISIONAL – CÉDULA DE CRÉDITO BANCÁRIO – ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA – VIABILIDADE DA PACTUAÇÃO DE DESCONTO EM CONTA CORRENTE. 1) De acordo com o Enunciado de Súmula n.º 297, do Superior Tribunal de Justiça, “o Código de Defesa do Consumidor é aplicável às instituições financeiras”. 2) É admitida a revisão de cláusulas de Contrato Bancário pelo Poder Judiciário, por força da garantia do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, e do direito assegurado no art. 6º, incisos V e VII, do Código de Defesa do Consumidor, com relativização do Princípio do “pacta sunt servanda”. 3) A pessoa jurídica que, com vistas a fomentar sua atividade empresarial, celebra contrato de empréstimo com instituição bancária, em regra, não se enquadra no conceito de consumidora, pois, em casos tais, o contrato é utilizado apenas para incrementar a atividade econômica da empresa, contudo, havendo demonstração da condição desprivilegiada e da vulnerabilidade do Apelante, que é uma microempresa, devem ser aplicadas as regras consumeristas no âmbito da Lide. 4) Nos termos do art. 333, do Código de Processo Civil, o ônus da prova compete ao Autor, no que tange aos fatos constitutivos do seu alegado direito”. (Apelação Cível 1.0079.13.020720-6/001 – 0207206-50.2013.8.13.0079(1). Relator: Des.Roberto Vasconcellos. Data Julgamento: 08/03/2016. Data da publicação da súmula: 14/03/2016).

Esse novo entendimento, que oferece às empresas a possibilidade de defender seus direitos em paridade de armas com os bancos, pode funcionar como importante elemento fomentador da atividade empresarial no país. O CDC traz instrumentos essenciais para tutela do empresário que firma Cédulas de Crédito Bancário com instituições financeiras. O art. 51 do CDC, por exemplo, impõe a nulidade de cláusulas contratuais abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada ou sejam incompatíveis com a boa-fé. A inversão do ônus da prova em favor do consumidor (artigo 6º, VIII do CDC), de igual modo, é um instituto fundamental na discussão dos contratos bancários. Isto porque os bancos dominam as regras técnicas e informativas de fornecimento de crédito, estando, assim, mais aptos a demonstrar fatos diretamente ligados à sua atividade.
Portanto, ME’s e EPP’s devem reivindicar judicialmente a aplicação do CDC nos contratos bancários, através de advogado especializado, com base na Teoria Finalista Mitigada, gerando mais equilíbrio na relação jurídica estabelecida entre os bancos e as pequenas empresas.

Flávio Henrique Costa Pereira
Sócio Fundador da Barcelos Pereira Sociedade de Advogados
Especialista em Direito Processual pelo IEC da PUC/MG
Membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/MG